Ha algo de intoleravel nessas imagens – breve analise do filme News
from home
News from home, de Chantal Akerman, talvez possa ser pensado como uma espécie de filme
epistolar. É o que nos parece propor, à primeira vista, o conjunto de cartas
maternas com que trabalhou a cineasta em 1976. Às quais, como já se disse
muitas vezes, ela parece responder com o filme. No entanto, como já observou
Ivone Margulies, em estudo sobre Akerman, há algo meio perverso nessa troca,
pois, ao emprestar a sua voz às queixas e saudades maternas, essa repetição –
com a voz da cineasta – do texto da mãe, recortado, todavia, pela filha, faz
dele propriedade agora não mais de sua remetente, mas sim da destinatária.
Se o filme tem na ausência, no
afastamento, motivos recorrentes, e constrói sua estrutura narrativa com base
na distância espacial entre as duas interlocutoras, ampliada, de certo modo,
pela reiteração - por parte da saudosa escrita materna- de pedidos de fotos e
maiores informações a respeito da temporada norte-americana da filha,
sobrepõe-se igualmente, à separação entre mãe e filha, a distância entre o
universo caseiro, íntimo, de amigos e parentes, que povoam as histórias
maternas, e as ruas, locais públicos, imagens impessoais que se sucedem na
tela, e que parecem, elas mesmas, registradas quase sempre a certa distância.
A imagem sonora do filme se compõe, ela
também, de um jogo de distâncias. De um lado, há uma série de trechos de cartas
de uma mãe para uma filha, que se encontra ausente, distante, em outro continente,
uma correspondência que é invariavelmente lida em off pela mesma voz feminina
(que se sabe ser a da própria cineasta), mensagens epistolares intercaladas, de
outro lado, pelos mais diversos ruídos de uma grande cidade. Por meio dessas
cartas, somos informados sobre alguns eventos cotidianos das duas vidas – a da
mãe, na Bélgica, e a da filha, em Nova York, mas nunca relatados por ela,
apenas pelos comentários maternos. As imagens visuais parecem funcionar assim
quase como uma espécie de resposta a essas cartas. Mas por elas nós não vemos a
filha a quem as cartas se acham endereçadas, nem mesmo vemos qualquer indício
de sua presença ou aspectos concretos de seu dia-a-dia. O que essas imagens nos
mostram são apenas vistas da cidade de Nova York. Imagens quaisquer, de ruas
quase desertas, de prédios, de carros, filmadas, às vezes, dentro do metrô, e
sempre mostradas em plano médio, com poucos movimentos da câmera, sem focalizar
nada em especial.
O filme parece se engendrar numa tensão
entre dois registros distintos. O das cartas, bastantes pessoais, que informam
sobre os acontecimentos da vida daquela que as escreveu, assim como também
alguns aspectos da vida levada pela sua filha em Nova York (como, por
exemplo, a quinta carta, na qual a mãe comenta notícias que foram enviadas pela
filha). E há o registro das imagens da cidade, que não informam nada de
especial sobre a filha e que somente apresentam Nova York sob uma perspectiva
bastante impessoal. As imagens do filme parecem conter “marcas evidentes da textualidade
do documentário” – “som abafado” (no que diz respeito aos ruídos da cidade),
“imagens desfocadas, figuras granuladas e fracamente iluminadas de atores
sociais apanhados às pressas”. Elas são, desse modo, um “documentário
observacional”, que, segundo o define Bill Nichols, nos apresenta o registrado
sem direcionar a recepção que se faz dele, sem uma presença mais atuante da
direção, ou seja sem que “ninguém nos diga nada sobre a imagem que vemos ou
sobre o que elas significam”(Nichols, 2004, p.52).
Além da defasagem entre os registros
sonoros e visuais, há também, entre essas imagens, uma diferença temporal. Se
as imagens visuais se passam em dois dias, as imagens sonoras implicam uma
passagem muito maior de tempo. Isso fica explícito na contagem que a mãe
costuma fazer, nas cartas enviadas por ela, dos dias que separam a sua da
última carta enviada pela filha (“há três dias que você não escreve” ou “já se
passaram dez dias desde que recebi a sua última carta”). Uma defasagem
complexificada pelo fato de o sujeito das cartas (a mãe) ser falado pela voz da
filha, que parece se apropriar, assim, do texto epistolar não como ouvinte, mas
como emissora. O que parece criar um tipo de curto-circuito numa comunicação
epistolar que passa a se alimentar da defasagem entre voz e sujeito.
A narrativa
epistolar do filme parece se mover, como a locução, num duplo descompasso. O dos registros ou “tons” que diferem nas imagens visuais e sonoras e o dos
tempos díspares apresentados pelas cartas e pelas imagens da cidade. Como disse
acima, as cartas se acham endereçadas a uma filha (elas sempre começam por
“minha querida filha” ou “querida Chantal”) e as imagens visuais funcionam, a
rigor, como uma espécie de resposta a essas cartas. Mas, por essas imagens, nós
não sabemos nada sobre a autora. O filme parece assim se constituir sem um
ponto de vista delimitável. O ponto de vista aí coincide com o das
imagens-epistolares dessa filha ausente, sendo a sua não presença o próprio
ponto de fuga das imagens visuais e sonoras.
A meu ver, essa não delimitação de um
ponto de vista é algo recorrente nos filmes de Akerman. Um exemplo é D`Est,
de 1993, fita realizada duas décadas depois de News from Home, na
qual a diretora faz uma espécie de retrato da União Soviética. Nela não temos, como
seria talvez o esperável, ‘cartões postais’ ou quaisquer componentes que
delimitem claramente aspectos típicos ou recorrentes da região. Ao contrário,
temos, por exemplo, uma multidão, um pouco dispersa, que olha alguma coisa que
nós não podemos ver. Vemos apenas homens e mulheres parados, sem qualquer
expressividade que revele o que eles olham. Eles podem estar simplesmente
esperando alguma coisa ou de fato vendo algo específico.
Na seqüência seguinte pessoas se
acumulam diante da saída de um prédio. Mais uma vez não sabemos o que eles
fazem ali, o que aguardam (se é que aguardam alguma coisa), nem a natureza do
prédio (se é um local de trabalho, de moradia, de vendas, etc). Mais adiante,
vemos crianças que brincam de escorregar na neve e, em seguida, há um
travelling de pelo menos 7 minutos no qual se mostram uma calçada coberta de
neve e alguns poucos passantes, assim como as luzes de prédios ao fundo. Como
disse, não há, em nenhuma dessas imagens, algo que possamos perceber como
próprio e único à Rússia. O que vemos são apenas imagens do cotidiano dessa
cidade.
Em Hôtel
Monterey, realizado em 1972, um ano depois de Akerman ir morar em Nova
York, temos algo muito próximo ao que ocorreria mais tarde em D`Est.
Aí, não há diferentes imagens de uma cidade, mas vistas internas de um
hotel. Além de visões de alguns poucos personagens, dos quais não sabemos nada
e que parecem ter a mesma relevância de qualquer outro elemento constituinte do
local. Penetramos pelo quartos, passamos pelos corredores, vemos, em uma
seqüência bastante longa, o fechar e abrir da porta de um elevador. Não temos
aí, como em D`Est, qualquer acontecimento extraordinário, apenas
contemplamos ou os cômodos do hotel ou pequenas ações dos hóspedes, e tudo isso
parece se diluir num tempo cotidiano.
As imagens dos filmes de Akerman parecem
ter, em parte, caráter aleatório e isto parece estar diretamente associado a
certo ‘apagamento’, ou pelo menos, a uma falta de delimitação mais clara sobre
o ponto de vista que constitui essas imagens. A câmera parece ser assim muito
menos aquilo que capta aspectos específicos do que uma vista não seletiva sobre
o que as imagens mostram.
Nesse sentido, podemos pensar em alguns dos comentários de Svetlana Alpers,
em A arte de descrever, sobre as pinturas holandesas do século
XVII. Por mais que o objeto de análise da autora não seja a imagem
cinematográfica, acredito que algumas de suas observações sobre a pintura
holandesa seiscentista possam nos ajudar a pensar sobre o aspecto descritivo
presente nos filmes de Akerman.
Em seu livro, Alpers comenta que, diferente da concepção de pintura
inspirada em Alberti, e que principia “com um observador que está ativamente
olhando para os objetos - de preferência figuras humanas – no espaço”, “o olho
de Kepler e a imagem de Vermeer são ambos evocados [numa] imagem
não-emoldurada do mundo comprimido num pedaço de papel sem nenhum observador
prévio para estabelecer uma posição ou escala humana que se possa introduzir na
obra” (Alpers, 1999, p.427).
Sobre o quadro As bodas de Arnolfini, de Jan Van Eyck, onde
podemos ver, ao fundo, em um pequeno espelho, o reflexo do pintor, Alpers
comenta que essa imagem especular “duplica a presença do artista como uma
testemunha interna”. Como uma espécie de auto-representação do pintor, essa
imagem “não nos revela algo sobre a natureza do autor humano”, pois “a presença
do artista como testemunha do mundo descrito é mais importante para a pintura
do que a sua própria natureza” (Alpers, 1999, p.113). O mundo se apresentaria,
nessa representação, como anterior à representação feita pelo pintor, que serve
de testemunha e o documenta, e não reivindica para si a criação, no plano da
representação, de um novo mundo, de um segundo mundo.
Na pintura italiana inspirada em Alberti temos, por meio da perspectiva, “a
construção de proporções harmoniosas no interior da representação em função da
distância”, sendo aquilo que a pintura expõe “mensurável em relação àquele que
a olha, o espectador” (Arasse, 2004, p.67). Nessas obras “o mundo torna-se
então comensurável ao homem”, de tal modo que “o homem possa construir uma
representação verdadeira de seu ponto de vista ”(Arasse, 2004, p.67). O mundo que a pintura mostra se acha organizado,
assim, em função da posição do espectador.
De modo distinto, e influenciados diretamente pelos
estudos do modelo do olho (como produtor mecânico de pinturas) realizados pelo
matemático e astrônomo Johannes Kepler e pelo uso da câmara escura, pintores
como Vermeer, Gerard Dou, Jan van der Heyden, dentre outros, não parecem
principiar suas obras supondo um observador prévio que organize a cena
mostrada. E se, como assinala Alpers, no século XVII holandês, “a pintura toma
o lugar do olho”, isso significa que o observador não está, na verdade, “em
parte alguma”. Nesses quadros seiscentistas holandeses,
ao contrário do que se dá na produção pictórica do Renascimento italiano, é
possível registrar, então, certo “caráter fragmentário”, assim como a
constituição de certos “enquadramentos arbitrários”, o que parece fazer com que
essa pintura se mostre capaz de oferecer “à Natureza o poder de reproduzir a si
mesma diretamente, sem a ajuda do homem” (Alpers, 1999, p.113).
Tal como nas pinturas holandesas comentadas por Alpers, nos filmes de
Akerman as imagens parecem se engendrar sem um observador prévio que as
organize. Elas são como testemunhas mudas, registros diretos de uma realidade
‘bruta’, não decupada ou organizada. Pelo aspecto aparentemente arbitrário
dessas imagens, pela atenuação da intervenção da diretora, essas imagens
parecem ser uma espécie de impressão do tempo presente. Essa sensação de que o
momento imprimiu na imagem o seu próprio presente, a sua fugaz aparição, não
ocorre porque o momento registrado seja extraordinário, inesquecível, mas, pelo
contrário, devido a seu caráter banal, inexpressivo e arbitrário. Suas imagens
parecem assim ser muito menos comentários sobre as coisas filmadas do que uma
espécie de constatação do estado das coisas. É o ordinário, o caráter banal e,
de certo modo, arbitrário do cotidiano, que parece emergir e guiar essas
imagens. Talvez possamos estabelecer aqui uma breve aproximação entre os filmes
de Akerman e os filmes de Ozu via um comentário de Deleuze presente em A
imagem-tempo.
Segundo Deleuze, a importância dos aspectos banais nos filme de Ozu, não
fazem do cineasta um “guardião dos valores tradicionais” ou um “reacionário”,
mas, pelo contrário, “o maior crítico da vida cotidiana”, já que “do próprio
cotidiano ele extrai o intolerável” (Deleuze, 2007, p.29).
Acredito que essa crítica ao cotidiano pela revelação do que nele é
intolerável também se dá também nos três filmes aqui comentados de Akerman. A
constatação da banalidade do cotidiano ganha certo peso e complexidade nesses
filmes em, pelo menos, dois sentidos. Primeiro, pelo caráter, em parte,
aleatório dessas imagens, pela falta de um ponto de vista preciso. O caráter
aleatório não parece estar somente presente na forma como essas imagens são
captadas, mas naquilo mesmo que elas mostram, parecendo assim emanar do próprio
cotidiano. O cotidiano é intolerável, porque não mensurável, por não estar de
acordo com o ponto de vista de um observador, escapando assim de qualquer
apreensão. Não é que tudo no ordinário se equivalha, mas, pelo contrário, por
não haverem equivalências possíveis não podem haver também hierarquias, algo
que o organize. Já que seus aspectos não têm um valor delimitável, não podemos
selecionar o que, no cotidiano, deve ou não deve ser mostrado, o que nele é fundamental,
já que sua fundamentação nos escapa. Nesse sentido, é difícil não lembrar de um
livro como Cosmos, de Gombrowicz, em particular de trecho no qual
um dos personagens comenta:
“Os anos se dissolvem em meses, os meses em dias, os dias em horas, em minutos
e em segundos, e os segundos escapam. Não se pode apanhá-los. O que sou eu? Eu
sou uma certa quantidade de segundos – que já foram. Resultado: nada. Nada”
(Gombrowicz, 1966, p.155)
A seu modo, algo semelhante é o que registram, em filmes bem diversos entre
si, Ozu e Akerman. Do plano vertical das hierarquias, passamos assim, nesses
casos, ao plano horizontal da acumulação, da descrição minuciosa.
Passo, então, ao segundo motivo, que me parece fazer com que essas imagens
portem certo peso do cotidiano. E que está relacionado, é claro, ao primeiro
motivo. O caráter não seletivo dessas imagens parece estar ligado a uma
impossibilidade daquele que as capta em escolher aquilo que deve ser mostrado.
E isso ocorre também para aquele que as vê. Quero dizer com isso que, como
Akerman parece estar impossibilitada de escolher entre esse ou aquele aspecto
do cotidiano, como sua direção parecer se diluir em meio ao tempo dispersivo
das banalidades, nós também, enquanto espectadores dessas imagens, nos achamos
como que desorientados em meio a uma quantidade inapreensível de elementos não
hierarquizados do cotidiano, e o nosso olhar acaba não se dirigindo a nada
preciso, fica somente vagando em meio a tudo aquilo que é mostrado pelo filme.
O cotidiano é assim intolerável por sua des-razão, sua imensurabilidade e por
sua dispersão.
Talvez possamos pensar que essa não seletividade das imagens, em Akerman,
também problematiza uma perspectiva funcional, uma visão que se dirige a certos
aspectos da imagem para fins específicos. Essas imagens como que bloqueiam uma
visada ‘intencional’ da visão. Desse modo, elas nos levam a uma situação-limite
na qual os esquemas “sensório-motores” não podem dar mais conta daquilo que se
impõe à nossa visão.
Para Deleuze, essa inibição do esquema sensório-motor, faria com que
saíssemos do clichê e chegássemos a ver algo na imagem que, pelo clichê, pode
passar despercebido aos nossos olhos. No capítulo Para além da imagem-movimento de A
imagem-tempo, há o seguinte comentário a esse respeito:
“Um clichê é uma imagem sensório-motora da coisa. Como
diz Bergson, nós não percebemos a coisa ou a imagem inteira, percebemos sempre
menos, percebemos apenas o que estamos interessados em perceber, ou melhor, o
que temos interesse em perceber, devido a nossos interesses econômicos, nossas
crenças ideológicas, nossas exigências psicológicas. Portanto, comumente, percebemos apenas clichês. Mas, se nossos esquemas
sensório-motores se bloqueiam ou quebram, então pode aparecer um outro tipo de
imagem: uma imagem ótica-sonora pura, a imagem inteira e sem metáfora, que faz
surgir a coisa em si mesma, literalmente, em seu excesso de horror ou de beleza
em seu caráter radical ou injustificável, pois ela não tem mais de ser
‘justificada’, como bem ou como mal” (Deleuze, 2007, p.31)..
Acredito que, pelo uso de um tempo estendido, pela não hierarquização dos
elementos das imagens, os filmes de Akerman conseguem, de algum modo, fazer com
que vejamos aquilo que na imagem não se tornaria visível caso ela estivesse
previamente organizada em função do olhar do espectador. É como se saíssemos de
uma percepção regulada pela cultura e fossemos em direção a uma percepção
‘bruta’, a um mundo perceptivo ‘amorfo’ que produziria seus próprios recursos
perceptuais.
O filme parece constituir assim uma narrativa cinematográfica que se
engendra por uma forma de rarefação da figura do narrador. O narrador não seria
assim pensado por sua onipresença, mas por uma ausência, como figura que se
dispersa e quase desaparece em meio aos registros aleatórios do cotidiano. E
são esses mesmos registros, assim como o tempo cotidiano, dilatado por eles,
que acabam por se sobrepor às cartas. Nas imagens finais, a voz da mãe
(expressa pela voz da cineasta) fica quase inaudível. O ruído da cidade como
que abafa a voz. Como se mesmo os acontecimentos relatados de forma epistolar,
isto é, à distância, e até as possibilidades de presença mediadas pelas cartas
se rarefizessem, se dispersassem, em meio à interferência quase em bruto de
outra cidade. Não aquela das cartas, Bruxelas. Mas a outra, Nova York, aquela
na qual se registra a ausência da filha/cineasta, e que, por um momento, pela
sugestão pouco enfática de um skyline, se deixa capturar meio em bruto, também,
por uma câmera que se parece deixar entregue à própria deriva.
ALPERS, Svetlana. A arte de descrever.
Edusp, 1999
ARASSE, Daniel. Histoires
de peintures. Paris: Gallimard, 2004
DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. Editora
Brasiliense, 2007
Gombrowicz, Witold. Cosmos. Paris:
Denöel, 1966
MARGULIES, Ivone. Nothing happens: Chantal
Akerman`s hyperrealist every day. Duke University Press, 1996
NICHOLS, Bill. The Voice of Documentary.
In: Film Quarterly, 1983